Uma viagem do Mundo...

O vôo Londres-Frankfurt tinha-se atrasado, por isso ele e toda a equipa entraram no avião que os traria para o Porto quando já toda a gente estava sentada. Não gostava que esperassem por ele, por isso sentiu-se um pouco observado por todos os outros passageiros. Dirigiu-se rapidamente para o seu lugar. Já tinha visto no bilhete que era o lugar do corredor. “Melhor”, pensou ele, “pelo menos assim não levanto a outra pessoa”. O resto da comitiva estava bem mais atrás no avião e já se sentavam. Ao chegar ao lugar 14B, pensou divertido que a Lufthansa tinha eliminado a sua fila favorita: 13. “Pode ser que o 14 seja de sorte!”, e enquanto pensava isto, pousou os olhos na passageira do 14A. A sua vizinha de assento tinha uma bela jovem que dormitava com a cabeça pousada na janela. Sapatilhas, calças de ganga rasgadas, top preto, pulseiras de cabedal com búzios, pele morena e um keffiyeh a cobrir o tronco. O impacto daquela imagem fê-lo ficar parado de pé. “La Zíngara”, pensou. Zíngara é a palavra italiana para cigana, mas para ele era também sinónimo de misticismo, força e beleza. Aquela mulher era a personificação viva do que imaginava. Sentou-se, procurando não a acordar. As hospedeiras começaram a verificar os cintos e levantar os tabuleiros. Reparou que o dela tinha o telemóvel em cima e que iria ter que acordar. Num impulso de cuidar, pegou no telemóvel e fechou o tabuleiro. Sem querer carregou num dos botões e surgiu uma daquelas fotos em que uma pessoa estica um braço para trás e alguém lhe agarra a mão. O pudor impediu que quisesse ver mais. “É um homem de sorte.”, pensou enquanto olhava uma última vez para a Bela Adormecida. “Se fosse na fila 13, aposto que era solteira. Mas tinha que ser 14, tiro ao lado. No basebol, era strike one…”, brincou.
Depois de todos sentados, o avião começou a andar, enquanto as hospedeiras faziam a sua coreografia de instruções de segurança. Pegou no seu livro preferido, “Rosas de Atacama”, que o acompanhava nas suas viagens, e começou a ler. Já na pista, um ligeiro solavanco, fez com que La Zingara se mexesse. Não acordando totalmente, voltou apenas a cara para o lado dele. Impossível conseguir não observar aquela beleza toda em repouso. Cabelos longos, ligeiramente clareados, sobrancelhas desenhadas, nariz pequeno e atrevido, e uma boca que parecia esconder um belíssimo sorriso. Estava perdido nos seus traços, quando ela abriu os olhos. Uns olhos castanhos escuros, doces mas vibrantes.
- Hello! – disse ela com voz ensonada.
Ele não estava à espera da saudação em inglês, talvez porque na cabeça dele já a tinha imaginado portuguesa.
- Ah, hi… - responder surpreso e um pouco envergonhado por ter sido apanhado a olhar para ela. Sem se mexer, metade acordada, o seu cérebro passou para o português.
- Já levantamos?
Outra vez apanhado na surpresa linguística, não pode deixar de rir ao responder:
- Nossa, conversa bilingue! Ahah! Não, vamos levantar agora.
A acordar devagar, esboçou um sorriso.
- Sendo que venho da China, todas as conversas dos últimos meses tem sido mistura de inglês, mandarim e sei lá mais o quê.
- China? Bem, grande viagem… Trabalho ou férias?
Enquanto se endireita um pouco, procura o telemóvel.
- Está aqui! – explica ele apressadamente – Tive de pegar nele quando pediram para recolher os tabuleiros.
- Calma, homem. Não te estava a acusar de nada. – brincou.
- Ahah! Estou calmo. Não sei mentir.
- Hum, esclarecida. Sim, China. – voltando à conversa – Em trabalho.
- Isso é que é pior.
- Viajar em férias é comigo, em trabalho dispenso.
- Acredito. Posso perguntar em quê?
- Podes. Não sei é se respondo.
- Ahah, é justo. Não insisto.
- Tou a brincar! Venda de produtos portugueses.
- Ah, estou certo que com uma vendedora assim, os chineses comprar tudo.
- Assim como?
Foi apanhado desprevenido. Lembrou-se da foto no telemóvel e conteve-se no elogio.
- Hum, uma vendedora tão simpática, gira e que representa bem Portugal.
- Ahah, coro barato! Os chineses não vão lá com isso.
- Primeiro, não é coro barato. Só constatei um facto que é evidente. Segundo, se os chineses não vêem isso, tem os gostos estragados.
- Oh, homem, estou a brincar. Deixa lá estar os gostos deles.
- Ahah, eu deixo. Eu também supostamente não sou como a maioria, prefiro morenas.
- E os outros não? – perguntou, surpresa.
- Nunca ouviste que os homens preferem as loiras?
- Então estou tramada.
- Estás tudo menos tramada em termos de beleza.
- Estás-me a dar uma moral.
- Ahah! É merecida, mas estou certo que não sou o único a vê-lo. Loiros e morenos, ninguém escapa.
- Não vou lá de paleio. Mesmo que fosse o Brad Pitt.
- Ah, afinal és mais loiros. Pena, pah, estou fora da corrida. – brincou.
- Piadinha! Por acaso não sou mais loiros.
- Ah, bom, ainda tenho chance... – era mais brincadeira do que uma esperança fundada. Desde o início da conversa que nunca conseguiu esquecer o que viu no telemóvel.
- Chance de quê?
A pergunta assim tão directa fê-lo não continuar mais aquele jogo de imaginação.
- Nada, nada. Estava a pegar contigo! – disfarçou.
- Ah, ainda bem, porque não tenciono casar-me. – riu-se – E agora vou dormir mais um boacadinho. É verdade, ainda não sei o teu nome. Aliás, não sei nada sobre ti. Podes ser um psicopata…
- Ahah! Psi está certo, mas de psicólogo. E chamo-me F. – disse, estendendo a mão.
- Ui, um Gustavo Santos. – estendendo a mão – Sou a M.. – enroscou-se e fechou os olhos.
“A M.”! “La Zingara”… Aquele “a” antes de M. parecia premonitório. A “tal”… The “one”.
- Porra, tudo menos Gustavo Santos… - saiu-lhe baixinho.
- Também acho! – respondeu, a caminho do sono.


Ela dormiu quase uma hora. Entretanto ele tentou ler um pouco mas aquela presença ao lado dele desassossegava-o. A certa altura, um dos seus jogadores levantou-se para ir ao WC e passou por ele. Ao olhar para a companheira de banco, abriu os olhos e ia falar, mas bastou um “Shh!”, para seguir caminho. Eles tinham-lhe muito respeito. Para além de psicólogo, viam-no como um amigo a quem ouviam e respeitavam.
Começou a ver os carrinhos das refeições a entrarem nos corredores. Não sabia se ela quereria comer ou dormir. Quando chegaram à fila deles, ele baixou o tabuleiro dela e disse à hospedeira:
- Pode pousar, obrigado. Ela acorda já…
Não foi logo mas passados uns minutos. Abriu os olhos devagar e ele sorriu.
- Ainda cá estou…
- Estou em consulta, senhor psicólogo?
- Ahah, não! Hora de comer.
- Ela olhou em frente e viu o tabuleiro.
- Já viste? Acordas e tens logo comida para ti. Um manjar… - diz, apontando para a refeição.
-Ui, tás a dar as vidinhas todas.
- Ahah, estou só a cuidar, como gosto de fazer.
-Sortuda de quem te levar – diz ela, começando a comer.
- És uma querida.
- Tem dias… Outros nem eu me aturo.
- Somos todos assim, acredita em mim. Mas algo me diz que és boa pessoa.
- Ui, estás a analisar-me? – pergunta, divertida.
- Em teoria todos nos analisamos uns aos outros. Faz parte do ser humano. É o que dizem os livros.
- Não gosto de ler. Livros é raro…
Não estava à espera daquela afirmação de uma mulher que parecia tão culta.
- A sério? Porquê? – não conseguiu disfarçar.
- Ahah! Porque é chato… Prefiro viver! – respondeu simplesmente.
- Hum, algo que não temos em comum. Adoro ler e escrever.
- Já viste? Algo que discordamos… - parecia divertida com o desconcerto dele.
- Pois. Também tinha que haver algo para termos picardias saudáveis. – tentou aligeirar.
- Picardias? – riu alto – Mas somos casados?
- Não! Porque tu não queres casar… - riu também.
- Quem disse isso? – perguntou ela, recostando-se no assento.
- Tu! Tu é que disseste que não tencionavas casar.
- Ahah! Estava a brincar. Se tiver de acontecer, acontecerá.
- Se te aparecer um modelo de homem que te faça perder a cabeça. -  brincou.
- O modelo já existe. – diz ela, encostando a cabeça outra vez.
De repente, ele voltou a lembrar a foto. Claro que já tinha aparecido. A pessoa da foto. E segundo as palavras dela: o modelo.
- Ele deixa os standards elevados – disse ainda, antes de adormecer novamente.
E mais uma vez ele ficou a pensar. Aquela figura atraía-o. A simplicidade dela desarmava-o e deixava-o sem jeito. Mas a foto. Aquele alguém. Strike two…


A certa altura do sono, ela rodou o corpo e encostou a cabeça no ombro dele. Ele não se mexeu um centímetro para não a acordar. Nem a vontade de ir ao WC. Uns vinte minutos depois, sentiu-a a acordar devagar. Levantou um pouco a cabeça e olhou para ele.
- Bom dia, Zíngara! Dormiu tudo? – disse ele docemente.
- Estou com os horários todos trocados. Desculpa estar encostada.
- Não tens de pedir desculpa. Só estava a tomar conta do teu sono.
- Sim, maínha.
- Ahah! Nem tua mãe, nem teu pai. Mas estou certo que são dois belos escultores.
- Oh! Lá estás tu, homem. Tens de tentar menos.
- Tentar menos?
- Sim.
O anúncio do início da descida não deixou que ele perguntasse mais nada.
- Finalmente, Portugal. – disse ela.
- E onde mais especificamente ficas em Portugal?
- Coimbra.
- Muito bem! Cidade dos amores.
O avião aterrou e puderam voltar a ligar os telemóveis. Como estavam sentados lado a lado, ele voltou a ver a foto.
- Bela foto…
- Sim, o meu modelo. – respondeu calmamente, acrescentando ao levantar-se. – O meu pai.
Se ela não estivesse tão ocupada a pegar na sua mochila, teria visto a cara dele passar de surpresa a um sorriso largo de contentamento. Sem querer, ela tinha-o enganado. Saíram do avião e foram trocando algumas palavras até à zona das malas onde já estava lá a equipa toda. Sabia que iam começar os comentários, por isso não quis que ela estivesse sujeita às brincadeiras deles. Ele viu a mala dele, enquanto ela falava ao telefone com o pai. Esperou um pouco para se despedir, depois de fazer sinal ao responsável pela equipa. Quando ela desligou, aproximou-se:
- Bela “a” M.! Foi um prazer ter-te conhecido e confesso que gostava de conhecer um pouco mais. Sabes, é que não concordo nada com aquilo de tentar de menos. Não quando achamos ter encontrado alguém especial. Como no basebol, quando um batedor está a só um strike de ser eliminado. Tem de tentar tudo. Nada menos que tudo…
- Ahah! Muito gostas de monólogos. Pode ser que o destino nos junte outra vez.
- Hum! O destino prega partidas. Prefiro o livre-arbítrio!
Sabia que tinha de ir.
- Dois beijos e espero encontrar-te…
Se a vida fosse poker, isto tinha sido um all-in…


Ao chegar a casa, abriu a mala e percebeu que não era a dele. Roupa de mulher. Olhou para a etiqueta na mala: M. C. P. M.. Mais nada! Estava ali a mala dela mas sem morada ou número de telefone.

Um pouco mais tarde, em Coimbra, ela olhou para etiqueta: F. R. Mas o dele tinha a morada e o número de telemóvel. O destino dá tantas voltas como o mundo…
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