Uma ilha no Mundo

I

Estranha sensação! Os pés enterraram-se na areia negra… Agora que ali estava, tudo parecia simples. A vida anterior parecia já tão longe… Tudo estava guardado na memória, essa imensa caixa arquivadora que o tempo reorganiza. Mas nada do passado parecia influenciar o futuro. A família conformou-se, os amigos sorriram… O destino estava traçado há muito, antes mesmo dele o conhecer ou compreender. Traçado não por uma entidade divina, mas pela sua própria natureza. A sua volatilidade! O Mundo teve que ser todo vivido para que, agora, toda esta tranquilidade tivesse sentido.
E que outro mar poderia estar à sua frente que não este? Viu e sentiu o plano mas furacoso Pacífico, viu e sentiu o quente mas estagnado Índico, mas só este Atlântico é o seu mar. Tormentoso, escuro, solitário, sombrio, mas leal. Não engana ninguém. Não atrai com seduções fáceis. Antes assusta, ruge, para que só se aproximem os que o amam. Papa Hemingway haveria de me entender, pensava com um sorriso… Inspirou fortemente, até sentir os pulmões inundados, a brisa fria da madrugada. Decidiu dar uns passos tímidos, saboreando um Éden muito íntimo. A rebentação trouxe pequenas gotas aos seus lábios! Recordou o sabor do oceano. Logo ele que sempre teve mais sal no coração que nos olhos.

Os seus choros são só dele… Aprendeu a partilhar tudo menos a dor. Deu a sua roupa, comida, dinheiro, a quem precisava, mas as lágrimas que alguém viu foram de alegria. As outras viveu-as sozinho, guardou-as para si.
Mas até isso parecia longe…
Decidiu caminhar paralelo à água. Ou perpendicular. Qual é o ponto de referência neste mar imenso? Queria retardar ao máximo o contacto com a água. Fechou os olhos e sentiu a tontura de quem abandona um sentido primário. Não se sente perdido. Abriu os olhos e sorriu… Encontrou-se e encontrou a sua casa. Há pessoas que procuram toda a vida a serenidade do lar sem o encontrar. Outros ainda pensam ser felizes num lugar, mas nunca se sentem completos. Completo, é essa a palavra, pensou… A harmonia que sente entre o corpo e o ambiente que o rodeia faz com que se sinta completo. Sorriu mais uma vez porque soube que estava na altura de sentir a temperatura da água. Desceu um pouco, cautelosamente. O primeiro impacto foi frio mas logo percebeu que estava morna. Fez-lhe lembrar o ritmo suave e lânguido encontrado em África. Tempos passados. Hoje não, decidiu. Guardaria um banho completo para outro dia. Afinal, era apenas o primeiro dia… Havia tanta coisa a saborear, agora que se tinha encontrado. Apenas ele, a sua casa, a sua praia, o seu mar. E, é claro, a sua escrita…

*

Depois desse seu primeiro contacto com o mar, teve que se preocupar com a sua casa. Arranjou uma pequena casa, com o mar a umas centenas de metros. As poucas casas à volta estavam ainda distantes. Era mesmo isso que desejava. Sossego! Paz! Tranquilidade! Durante um tempo seria só ele e a solidão…
Comprou uma cama larga, rente ao chão, a garantir proximidade com a terra que o acolhia. A janela, para já pequena mas que depois alargaria, dava para o azul do céu e do mar. A mesa da escrita seria ali, se bem que todas as mesas da sua casa seriam transformadas em depósitos de livros e papéis. Num armário antigo, com portas a gritar por óleo, estariam pousadas as poucas roupas. Duas camisas, umas calças largas, uns calções, umas t-shirts, umas camisolas e um casaco quente. O que achava necessário para o clima incerto da Ilha…
A casa de banho, ou quarto de banho atendendo ao tamanho, tinha uma sanita e um lavatório. A banheira era uma enorme tina de cobre, que apesar de pesada, podia ser transportada de uma divisão para a outra. Imaginou logo tomar banho no alpendre à luz da Lua e com o horizonte à sua frente.
A cozinha e a sala estavam divididas por um balcão que servia para pousar as panelas. Tudo o que cozinhasse, perfumaria a casa, o que não o assustava… Aprendeu há muito tempo a cuidar do estômago. As suas viagens fizeram-no conhecer cheiros e sabores. Conseguia lembrar os lugares onde conheceu cada ingrediente, cada mistura, cada refeição…
Uma pequena porta dava para uma pequena escada que dava para um pequeno tanque e para uma pequena horta. Ainda não sabia o que iria fazer com a horta, mas poderia cultivar pequenas coisas como vegetais e especiarias. Descobriu cedo na vida o valor que cada erva ou pozinho tem. Que cada prato se modifica ao sabor da certeza da nossa mão e da experiência da nossa vista…
Mas foi o alpendre que o fez escolher a casa. Largo, mais do que o edifício, a lembrar as casas do oeste americano. Todo em madeira e com uma vista monocromática: azul! Do céu, do mar, do destino…
Queria encontrar aqui a paz e tranquilidade que ansiava. Lembrou as palavras de Jacinto no hospital: “Aqui, o Domingo é só um dia da semana!”.

O Jacinto era um desses rapazes eternos, que outros chamam de atrasados mentais, mas que são sobretudo “tramados pela vida”. Usado para roubar por uns e como divertimento por outros (como quando o obrigaram a fumar um charro e o deixaram ao abandono num banco de jardim). Miúdos a quem as pessoas ignoram, mas que o mundo deveria ouvir.

Aquela frase, que parecia tão simples, tinha agora um sentido de filósofo. Queria que todos os dias fossem iguais, em que não houvessem nem horas nem horários…


II

Teriam passado três ou quatro semanas quando a comida que tinha trazido se esgotou. A casa estava praticamente arranjada e transformada no seu lar. Tinha tido contacto apenas com os funcionários da água e da electricidade e com um miúdo que por vezes passava para ir pescar à praia. Com os seus 12 anos, olhar esperto e jeito atrevido, faziam lembrar um Huckleberry Finn das ilhas. Sabia sempre se a pescaria tinha corrido bem, pela quantidade de palavras que ele debitava na volta. Se voltava sem nada, dizia um “Até amanhã!” apagado. Mas se corria bem, ia contando as suas estórias, as da povoação e as da Ilha. Acabava sempre por oferecer um dos peixes, mas ouvia sempre que um dia jantariam os dois o resultado da pescaria. Sempre era um contacto com o Mundo humano e ele gostava do rapaz… Reconhecia-lhe traços seus quando tinha a mesma idade, mas ao mesmo tempo sentia-lhe uma insularidade desarmante. Ele não tinha conhecido grandes cidades, grandes tecnologias, grandes verdades, grandes mentiras… Tinha uma inocência, ou um alheamento, invejável. Por isso aqueles encontros eram sempre esperados com um sorriso. Mas, com a comida a escassear, estava na altura de ir à povoação e comprar o necessário para cozinhar e semear na sua horta.

*

Era um sábado de manhã, em Setembro. O dia estava encoberto, a ameaçar chuva. Gostava de dias assim, em que se sentia a humidade no ar. Saiu com o casaco apertado e inspirou fundo. Semicerrou os olhos e quando os abriu viu o mar azul-escuro. Sentiu um arrepio. Estranho, pensou. Conhecia bem aqueles arrepios… Aconteciam como premonições de coisas muito boas ou muito más. Já tivera muitos exemplos ao longo da vida: a morte do avô, a partida na primeira grande viagem… Não havia maneira de prever o futuro por isso encolheu os ombros e meteu pelo carreiro. Era um caminho estreito, ligeiramente inclinado, aberto por entre giestas e flores silvestres. Caminhava devagar, e ia assobiando uma melodia qualquer. A povoação não ficava muito longe e passados 5 minutos alcançou a primeira casa. Uma série de casas iguais com apenas um piso, espaçadas umas das outras por quintais. Já tinha corrido a notícia que uma pessoa de fora tinha ocupado a casa da praia. Foi com alguma estranheza que souberam que o velho O. tinha vendido a casa. Duas ou três pessoas assomaram à porta para vê-lo passar. Acenou ao de leve a cabeça, no seu jeito tímido de se integrar. Responderam-lhe da mesma forma, num exercício de distanciamento protector. Percorreu uma centena de metros e chegou à mercearia. Tinha-as visto em Itália, carregadas de massas, queijos e presuntos; no Perú, com ponchos, feijão e carne; na Índia, com todas as especiarias (sobretudo o caril, que não conseguia gostar) … Em todo o lado tinha preferido os pequenos mercados aos gigantes do consumismo.
Entrou com o vagar de quem quer apreender todas as sensações. Viu um homem ao balcão entretido com umas contas. Deu um “Bom dia!” calmo mas seguro. O homem levantou a cabeça estranhando o sotaque, mas percebendo quem poderia ser, logo se desenhou um sorriso de simpatia por baixo do bigode. Tinha a mesma altura do que ele, uma barriga cheia de coisas boas e o cabelo curto. Disse-lhe para estar à vontade na loja e com tudo mais…
Agarrou um pequeno cesto de vime e começou a procurar as coisas. Demorou um pouco, olhando para casa coisa, imaginando refeições. Agradeceu mentalmente por ninguém o incomodar e foram passando os minutos. Já estava no último corredor quando foi retirado do mundo culinário por vozes. Uma voz feminina, jovem, decidida. Olhou para a frente da loja. À contraluz, distinguia uma rapariga, talvez uns anos mais nova que ele, cabelo escuro, jeito desinibido. Falavam sobre qualquer coisa da casa. Após uns momentos, aproximou-se do balcão. Parece que só aí os dois se aperceberam da sua presença. Pousou o saco em cima do balcão e esperou. Olharam os dois para ele, esperando que ele dissesse alguma coisa. Foi o merceeiro que quebrou o silêncio:
- Então, já está tudo? – disse com um sorriso – Aproveito para me apresentar. Chamo-me A.. – e estendeu a mão.
Ele retribuiu o gesto e voltou-se para a rapariga. Agora já podia ver melhor as feições. Olhos escuros, doces mas determinados. Traços suaves mas gregos… Sentindo que ela não ia falar, A. fê-lo.
- E esta é a minha filha, C..
Ele estendeu a mão com um sorriso. Com um olhar perscrutador, ela respondeu:
- Sorris, mas tens os olhos tristes!
Ele deixou cair a mão e ficou a olha-la. Uma desconhecida a dizer que ele tinha os olhos tristes! Logo agora que ele tinha descoberto o sítio perfeito para ficar a fazer o que mais gostava! Sentia que tinha de responder, mas… E se ela tinha razão? Bastou a dúvida criada por aquela rapariga.
- Porquê? – disse numa voz sumida.
Esperava uma resposta elaborada. Algo que o ajudasse a entender. Em vez disso…
- Porque sim.
A simplicidade e crueza da resposta foram demasiado para ele. Já só ouviu ao longe ela a dizer qualquer coisa ao pai e a despedir-se dele.
- Não é verdade. – disse quando ela já saía da loja.
- Peço desculpa pela minha filha. – começou o pai dela – Tem um temperamento típico de ilhéu. Sai à mãe! – acabou o homem.
Ele assentiu com a cabeça mas o mal estava feito. Pagou as compras e já não ouviu nenhum dos conselhos sobre as sementes que queria plantar. Saiu da loja, atordoado pelo sol da manhã.

III

Foram uns dias sem consciência. Distraiu-se com as plantações e a arrumação final da casa. Pouco falou com o R., assim se chamava o miúdo. Ia todos os dias ver o pôr-do-sol ao pé do mar! Em Setembro ainda estava bom tempo, e sabia mesmo bem um mergulho ao fim do dia. Estava já de saída do mar, quando viu que outra pessoa tinha tido a mesma ideia. O vulto aproximou-se lentamente e só a uns vinte metros conseguiu ver que era ela. Ela olhou para ele e entrou na água um pouco ao lado. Pareceu-lhe que tinha um sorriso nos lábios mas começava a faltar a luz. Vestia um biquini azul que mostrava a sua pele lisa. Uns seios pequenos mas perfeitos, como ele gostava. Umas pernas torneadas com umas ancas crescentes até um rabo delicioso. Não gostava de mulheres escanzeladas mas assim, com curvas provocantes e formas apetecíveis. Olhou para baixo e não pode deixar de rir. Os calções estavam com dificuldade em suster o fluxo de sangue que a visão lhe provocou. Quando olhou novamente para cima, ela estava perto dele. Parou mesmo à sua frente. Souberam os dois o que ia acontecer e o sorriso foi simultâneo. Sentiu uns lábios macios, uma língua irrequieta. Mas a sensação que perdurou foi o sabor a sal, a mar, a destino…

*

Avançaram quase às cegas até casa, pela falta de luz, mas sobretudo pela sede de beijos que saciavam um no outro. Lá conseguiram abrir a porta com um empurrão e chegaram à cama. Ela deixou-se sentar enquanto lhe beijava o tronco nu. Era bom sentir aqueles beijos quentes, enquanto as mãos dela percorriam as costas dele. Baixou-lhe os calções e continuou com beijos milimetricamente afastados… Gostava de sentir as mãos dela nas suas nádegas, ao contrário do que era costume com outras. Pousou as mãos nos ombros dela e recostou-a para trás. Beijou-lhe a testa, o nariz, a boca, o queixo… Parou no queixo. Ela tinha aquela covinha sexy onde apetecia deixar os lábios. Mas continuou… Beijou o pescoço, e enquanto as mãos desviavam o tecido do biquini, ia descobrindo e absorvendo aqueles mamilos grandes, duros, irresistíveis. Não resistiu a morder ao de leve, provocando um gemido de prazer. Desceu para a barriga e agarrou com as duas mãos firmemente aquelas ancas poderosas. Já tinha tido várias mulheres, já tinha passado aquele momento exploratório várias vezes, mas estava com um entusiasmo de criança. Incrível como o seu pensamento voava enquanto percorria com a língua o umbigo até à linha inferior do ventre. Com ajuda de um movimento ondular das pernas, retirou o que faltava da roupa dela e foi beijando a parte interior das coxas. Um sabor a maresia emergia daquelas pernas apetitosas. Voltou às mordidelas suaves enquanto subia e quando chegou à porta de todos os segredos, demorou muito tempo a sussurrar a palavra-chave. Foi sentindo o entusiasmo dela crescer, até que as mãos dela empurraram a cabeça dele contra si. Não se contendo, ela puxou-o pelo cabelo até ele estar em cima de si. Aquela animalidade, paixão, desejo, excitava-o. Fizeram amor assim, porque ela estava a adorar sentir o peso dele e ele estava deliciado com o abraço forte dela. Tiveram uma explosão de sentidos e por fim ele deixou-se morrer nos braços dela…


IV

Ela aparecia quando lhe apetecia. Por vezes apanhava-o a escrever e deitava-se na cama sem o incomodar. Talvez por sentir a presença dela, ele virava-se a sorrir e ia ter com ela. Gostavam de pôr a banheira de cobre no alpendre, encher de água quente, dar um mergulho no mar, correr para casa, ficando a repousar no conforto dos braços um do outro. Uma dessas vezes, tiveram de correr para dentro porque viram a figura de R. ao longe… Ainda assim, no dia seguinte, já a povoação murmurava sobre eles. Não fizeram caso e quando R. os apanhou juntos na praia, riram e ficaram à conversa com o rapaz. Um dia em que a pescaria correu muito bem, convidaram-no a jantar com eles. Grelharam o peixe, depois de ter ficado numa marinada com ervas e vinho branco. Para acompanhar, um arroz de tomate solto, à moda do Continente.
Havia discussões! Normalmente por causa do feitio dele ou do feitio dela, mas não demorava muito a que ele sorrisse e a fizesse sorrir. Davam-se bem, mesmo em assuntos de cama. Aliás, nem só na cama vivia aquele amor. O mar foi testemunha de paixão, a praia foi esconderijo da atracção, e até um pequeno campo de espigas de milho (de pé, no centro da plantação, a rebentar de excitação) foi lugar de desejo…
Não falavam muito do passado e muito menos do futuro. Havia um pacto secreto de não quererem quebrar o encanto do momento. Ele estava deliciado com tudo. Parecia ter esquecido as promessas de solidão que fez a si próprio. Se bem que escrevesse irregularmente, sentia-se melhor quando ela estava por perto. As ideias tornavam-se mais soltas, menos fechadas. Já não lhe apetecia escrever sobre casos perdidos. Pensava e escrevia frases alegres, sentimentos felizes, sensações positivas. Até as suas viagens, que tinha decidido relatar, pareciam agora um mar de coisas boas. Tudo o que era mau tinha-se diluído…

*

Já tinha começado o Outono Outubro quando ela dormiu na sua casa pela primeira vez. Ele não tinha voltado à povoação. Ou ela ou R. traziam-lhe as coisas. Preferia assim porque não sabia como encarar A.. Não que se arrependesse ou que tivesse vergonha na relação mas ainda se considerava um “estrangeiro”. E tinha a certeza que também ainda o consideravam como tal. Mas uma noite, sentiu que ela não preparava as coisas para se ir embora. Sorriu por dentro, não sabendo bem o porquê. Não falaram sobre o que ambos pensavam, e quando surgiu a hora, ela deitou-se e encostou-se a ele. Era um momento importante na relação. Era o assumir em casa dela, e consequentemente na povoação, que os dois estavam juntos. Ficou a pensar durante algum tempo! Depois olhou-a… Já a tinha visto dormitar, mas era a primeira vez que a viu em repouso completo. A sua respiração era tranquila mas pesada. O sono dos jovens! De repente, um barulho estranho. Era ela que rangia os dentes. Um som desagradável e incomodativo. Decidiu abraçá-la e beijar-lhe as costas. Imediatamente ela acalmou. Ele fechou os olhos e dormiu…
Acordou cedo. Deu-lhe um beijo na testa e levantou-se. O dia ainda não tinha nascido, e apenas o marulhar quebrava o silêncio. Abriu a porta de casa, espreguiçou-se e inspirou fortemente. A maresia, a escuridão, a madrugada. Tudo lhe entrou pelas narinas, passou pelos olhos, ricocheteou no cérebro e saiu pela boca num longo bocejo. Voltou para dentro, olhou a cama e viu sossego. Dirigiu-se à cozinha, acendeu o fogão, pousou um tacho, pegou numa barra de chocolate e pô-la a derreter num pouco de leite, mexendo cuidadosamente. A seu tempo, juntou um pouco de açúcar amarelo e canela. Deixou o tempo suficiente para os aromas e sabores se fundirem sem se queimarem. Despejou o conteúdo em duas canecas de barro, tal como tinha visto fazer os índios de uma província perdida do México. Lembrou esses dias frios de errância intercontinental, à procura de tudo, de nada, de qualquer coisa. Começou essa vida cheio de sonhos, ilusões, força, sorrisos. Foi vendo muita coisa boa (hospitalidade, amizade, cultura), mas também encontrou os males do mundo (pobreza, guerra, traição, corrupção, ditadura). Foi fotógrafo, jornalista, voluntário, marinheiro, cozinheiro, e demais actividades que não implicassem ficar parado.
Acordou das recordações, levou as canecas para o quarto e pousou-as na mesa. Deitou-se devagar e esperou uns minutos que o cheiro do chocolate quente a acordasse. Ela abriu os olhos e inspirou fundo. Olhou para ele e sorriu. Ele deu-lhe um beijo e deixaram o chocolate arrefecer mais um pouco…

V

Levantou-se! Encostou a cabeça ao vidro da janela e olhou lá para fora. A manhã principiava e Novembro terminava. O frio lá fora adivinhava-se, e algumas nuvens surgiram cinzentonas. Dirigiu-se à cozinha e cumpriu o ritual. Fez dois chocolates quentes! Pousou-os na mesa da sala… Começou a beber o seu, calmamente. Demorou meia hora, enquanto olhava absorto o nada. Levantou-se, pegou nas duas canecas e lavou-as…

*

Tinha tudo acontecido rápido demais. Quase sem discussões! Umas semanas atrás, quando estava ainda tudo no princípio, quando começavam a conhecer-se, quando hábitos eram já partilhados, quando palavras eram já dispensáveis, ela falou:
- Quero ir-me embora!
Aquela frase não significava ir embora daquela casa, mas daquela Ilha, daquela vida. O espírito sentia-se preso naquele pedaço de terra rodeado de mar. Queria ver mais lugares, conhecer mais Mundo. Perguntou-lhe se ia com ele ou se ficava. Ele achou incrível como ela conseguia reduzir tudo aquela pergunta. Todos os sentimentos existentes ou futuros, todas as vivências passadas ou por passar…
Respondeu-lhe que ficava. Talvez surpreendida, perguntou-lhe se não a amava.
- É por te amar que ficarei à tua espera. – disse.
Ela respondeu que era uma estupidez, que ele era novo demais para ficar naquela Ilha, que queria que ele a guiasse nas cidades que descreveu, que lhe mostrasse as coisas bonitas que já tinha visto. Respirando fundo, ele respondeu que tinha encontrado a sua casa, o seu lar. E que poderia não ser o dela. Ela tinha de se perder no mundo, como ele fez, para poder descobrir onde era feliz. Mesmo sem ele, se ela estivesse feliz, encontraria alguém para amar e esquecê-lo-ia. Ela negou, disse que o amava imenso, que era louca por ele, que o respeitava mais que qualquer coisa.
- Eu sei que sim! Agora, pensas assim. Mas precisas de voar, e quando assim é, o futuro torna-se tão difuso como o horizonte…
Ela disse que não entendia, e que achava que ele não a amava. Saiu sem mais palavras.

Ela estava a ser injusta, mas sem o saber. Ele conhecia demasiado bem aquela sensação de ter de partir e querer levar o amor connosco. Mas não se pode obrigar ninguém a fugir. É uma vontade única que se tem ou não. Por duas vezes ele fugiu. Primeiro, deixou os pais, os amigos e a namorada que não quis partir com ele, para descobrir o Mundo. Para se descobrir a si próprio… Vagueou vários anos, demasiados dias, voltou ao mesmo sítio e encontrou os pais cheio de saudade, os amigos cheios de curiosidade e a namorada cheia de amor... mas por outro! Sorriu! Sabia que não podia pedir a alguém para esperar um apátrida… Haviam demasiados homens presentes para ela esperar por um tão ausente. Ficou o tempo suficiente para convencer os pais e surpreender os amigos com o anúncio de uma última viagem. Foi como se fugisse do amor que não tinha resistido. Queria então paz, já que não podia haver amor! E para isso, fugiu a segunda vez… Desta vez para o lar que sempre sonhou.
Decidiu escrever aos pais, contar tudo o que tinha acontecido. Teve vontade de lhes pedir para ir ter com ele. Precisava do apoio deles. E, sobretudo, sentia-se culpado. A maior parte dos filhos únicos consideram-se sortudos, porque assim não tem de partilhar as coisas boas. Ele não! Doía-lhe a consciência de deixar os pais sozinhos, de ter um desapego enorme à presença física, mesmo sentindo um amor do tamanho do Mundo por eles. Nunca lhes tinha dito isso. Pela primeira vez escreveu na carta que os amava muitíssimo. E que pedia desculpa por não ser o filho perfeito. Ele era o filho pródigo que para além de não voltar para a companhia deles, não podia delegar nos irmãos essa função…
Nesses dias mais difíceis, acompanhava R. que continuava a pescaria. Certo dia, convidou-o a jantar com ele.
- Ela faz-te falta? – perguntou, certeiro.
- Mais do que isso, ela falta-me…
Não sabia se o petiz tinha entendido, mas ficou calado uns minutos como que a pensar. Do nada, interrompeu o silêncio, dizendo que ficavam bem umas batatas cozidas com azeite a acompanhar o peixe. Soltaram os dois uma sonora gargalhada e lá foram…

VI

Levantou-se! Encostou a cabeça ao vidro da janela e olhou lá para fora. A manhã já tinha acordado há muito e Julho começava. O calor era muito e o sol brilhava intensamente. Dirigiu-se à cozinha e cumpriu o ritual. Fez dois chocolates quentes, mas juntou leite frio! Pousou-os na mesa da sala… Começou a beber o seu, calmamente. Demorou mais do que o costume. Sentia algo de indefinível. Três anos são muito tempo. Ele já tinha escrito várias coisas e enviado para o seu editor. R. já estava um adolescente a roçar o adulto, J.A. já o tinha visitado para fazer companhia (ou para se fazerem companhia), e a sua memória de escritor começava a pregar partidas. Confundia o que tinha vivido realmente, com o que tinha vivido no papel. Apenas as experiências, porque ela ainda estava conservada em todos os seus sentidos. Pensou que o facto de não ter visto nenhuma mulher durante aquele tempo todo, tinha ajudado a memória…
Mas hoje perguntava-se o porquê daquele ritual. Já tinha deitado fora chocolate suficiente para fazer umas centenas de bolos. E para quê? A pergunta nem teve tempo de chegar ao cérebro, para a resposta se formar. Porque a amava, porque amá-la tinha feito com que aquele ritual lhe parecesse lógico, porque não se desiste do amor, porque o amor é tudo o que necessitamos, porque só assim teria lógica esperar por alguém que poderia não voltar, porque preferia continuar aquilo do que aceitar a solidão. Pôs a cabeça entre as mãos e chorou. Tranquilamente, como quando somos apanhados em falta, a duvidar do que é certo.

*

Não se apercebeu da sua presença na porta, da sua entrada, de ter pegado na caneca e ter bebido um pouco.
- Tens de começar a pôr chocolate magro, porque senão daqui a uns anos achas que estou gorda!
Ele levantou a cabeça, e os seus olhos sorriram pela primeira vez em muitos anos. Ela tinha voltado…

1 comentários:

Anónimo disse...

A minha conclusão (particular) é que o ser humano nunca está (100%) satisfeito. Quando está só, sente falta do outro, quando está com o outro, deseja a solidão. Quando tem a banheira na varanda a quer no quente da casa de banho, quando está no quente quer a brisa do mar na varanda.
A vida portanto (a minha pelo menos) é feita apenas de buscas..mas, ao que me parece, nunca se encontros e satisfação!
Lindo mesmo!
Duda

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