Esta não é uma estória de amor. Poderia ter sido, mas não foi. Tornou-se talvez numa estória de entrega, mas o amor foi ceifado. E foi ceifado no dia em que aquele carro se atravessou na estrada. Era ele que conduzia. A noite tinha sido calma e ela dormia no lugar do passageiro. De repente, um cruzamento. Um cruzamento como outro qualquer em que a luz verde lhe dizia para avançar. A seguir, tudo aconteceu numa câmara lenta acelerada. Sentiu o choque no seu corpo e os seus nervos sensoriais demoraram milésimos de segundo para informar o seu cérebro que algo terrível tinha acontecido. Ainda o carro não tinha parado e já ele via pelo canto do olho o corpo inanimado dela a ser jogado de um lado para o outro. Não conseguia ver se ela tinha os olhos abertos e por momentos teve a ilusão e esperança que ela ainda estivesse a dormir um sono tranquilo. Um simples cruzamento na estrada que se transforma num cruzamento na vida.
Tinham-se conhecido há alguns meses e bastaram algumas horas para se apaixonarem. Não que o admitissem. Outros cruzamentos da vida tinham-nos tornado frios e distantes das relações. Tentaram negar uma e outra vez o sentimento, ainda que mais por protecção do que por verdade. Mas o sentimento tem esta força silenciosa da água que infiltra em todas as falhas da nossa vontade. Mensagens, telefonemas, encontros, tudo aumentava contra tudo que pensavam. Sentiam-se peças que sabem que encaixam mas decidem experimentar todas as posições erradas até se renderem à certa. Mas tiveram de se render. E mergulharam. Aquela era uma das primeiras saídas depois de aceitarem que não conseguiam estar separadas. Um jantar, uma saída rápida e agora iam para casa. E ela adormeceu. Lembra-se de estar a olhá-la momentos antes quando o sinal estava vermelho. Parado a vê-la dormir tranquilamente. Como tanto gostava! Agora que sentiu o choque não pode deixar de pensar que deveria ter ficado a olhá-la mais um pouco. Bastaria mais um momento. Daqueles que acontecem devido a forças misteriosas que uns chamam Deus e os outros Destino. Qualquer um deles que tivesse feito com que demorasse um pouco mais a arrancar. Dois ou três segundos eram suficientes para que o caminho depois deste cruzamento fosse completamente diferente. Mas não foi.
Finalmente o carro pára o seu movimento anti-natura e ele fechou os olhos. Tinha medo de os abrir. Desejava tanto que nada fosse real. Quase desejou nunca a ter conhecido porque agora receava tê-la perdido. A descarga de adrenalina que varreu o seu corpo ainda confundia os seus sentidos. Não sabia o quanto ferido estava mas o verdadeiro medo era abrir os olhos e vê-la. Só queria ouvir a voz dela. Ouvi-la perguntar se ele estava bem. Mas aqueles dois ou três segundos transformados em séculos não lhe trouxeram a voz que queria ouvir. Reuniu o medo e a coragem num mesmo movimento e abriu os olhos. Rodou o pescoço devagar sem saber se doía ou não. A cabeça dela estava tombada para o lado esquerdo. Quase podia jurar que ela ainda dormia. Mas logo viu um fio de sangue que devagar construía um caminho da testa até ao pescoço. Uma descarga eléctrica percorreu todos os seus neurónios. Medo, pânico, impotência. Tudo lhe surgiu. Como se não quisesse acordá-la, tocou-lhe no braço e chamou o nome baixinho. Como faria numa manhã em que dormissem juntos e ele apenas quisesse dizer-lhe para se levantar. E como ele queria que ela se levantasse. Logo ela que era conhecida pela sua energia. Logo ela que só com ela se acalmava. Mas não agora.
A mente humana percorre estranhos lugares em certos momentos. Para ele apenas tinham decorridos segundos por isso não entendia como estava ali tanta gente, tantas luzes azuis a piscar, tantos bombeiros e paramédicos. Sentiu a porta do seu lado a abrir e alguém a dizer algo ao longe. Viu uma cara perto da sua cara e uma pequena lanterna apontada aos seus olhos. Estaria em choque? Talvez. Mas começava a ouvir a voz cada vez mais perto. Conseguiu afirmar que estava bem, embora não soubesse ao certo se o estava. Cuidem dela, tratem dela, era o que lhe apetecia falar. Perguntaram-lhe se conseguia mexer as mãos e os pés, respondeu que sim. Perguntaram-lhe se conseguia sair pelo próprio pé, respondeu que sim. Percebeu depois que só assim poderiam assisti-la. A porta dela estava de tal forma danificada que era impossível abrir. Isso nunca poderia ser bom. Pensou logo naquele corpo que amou tantas vezes, beijou, abraçou, protegeu, e que naquele momento sofreu o impacto do outro carro. Ficou de pé ao lado do carro, embrulhado numa manta de alumínio dada por um bombeiro que lhe acarinhava com palavras amigas. Viu de forma longínqua o outro condutor a ser transportado numa maca sem perceber o seu estado. Naquele momento não sentia raiva ou ódio. Como se a raiva ou ódio estivessem dependentes de como ela estaria. Perto do sei carro várias pessoas faziam o seu trabalho. Esperava a qualquer momento ouvir que já havia movimento ou fala. Mas não houve.
Coma. Quatro letras. Uma palavra. Um não-estado. Não existe estado de coma. O coma é não estar. Não está vivo, não está morto. Está em pausa. Durante duas semanas eles estiveram em pausa. Com o ventilador ligado, a respiração assistida, o corpo paralisado, o rosto contraído. Ele sentia que ela não estava em paz. Aquela não era a tranquilidade que o sono dela tinha. Ele sabia que ainda que sedada, ela estava como dores e isso atormentava-o. Fisicamente ele tinha escapado com poucas marcas. Entretanto soubera que o outro condutor também estava recuperado. Não sabia o que sentir sobre isso. Apenas lhe interessava como ela estava. Os médicos diziam que o prognóstico era reservado. Reservado para quem? Para os médicos, para Deus? Aqueles dias tinham sido tormentosos. A família dela estava sempre presente e não conseguia perceber se o culpavam ou não. De alguma forma ele sentia-se culpado. Não que o acidente tivesse sido culpa sua. Mas algo mais profundo, mais visceral. Se ele nunca a tivesse conhecido, ela ainda estaria viva. Foi ao conhecê-lo, amá-lo, que ela estava naquele carro. Que ela estava naquele cruzamento. Ele podia estar sozinho. Ele podia ter tido o acidente noutro dia. Mas não teve.
Enquanto os dias passavam, as palavras dos médicos iam escasseando. Como se a esperança fosse um balão que se esvazia um pouco todos os dias. E as palavras só voltam para más notícias. Que ela teria que estar sedada e inconsciente porque as dores no corpo eram enormes, que não havia forma de ela retomar a respiração autónoma, que a actividade cerebral ia diminuindo. Perguntou num acesso de egoísmo se não seria possível acordá-la uns momentos. Queria ouvir a sua voz mais uma vez. Queria conseguir fazê-la sorrir como conseguia sempre. Queria dizer-lhe que tudo iria correr bem e que ele estava ali. Mas essa ideia foi rejeitada com um simples não. E depois desse dia começou a ver os médicos a falar cada vez mais com a família. Primeiro como uma espécie de rumor, baixinho. Depois em conversas e por fim sentiu um baque quando ouviu um grito de desespero da mãe dela. Aproximou-se, sentido não a vergonha de ser um intruso, mas com a culpa de ser conivente na decisão que mais temia. Os médicos acreditavam agora que o melhor para ela que o ventilador fosse desligado. Desligar. Deixar que o corpo dela se desligasse da vida. Desistir da ideia que aquele corpo seria alguma vez capaz de se mexer novamente. De sentir, amar, sofrer até. Que não mais veria aquele sorriso que o fazia feliz. Não, ele nunca se iria desligar. A ligação seria cortada. Poderia ser desligada mas não por ele.
Foi numa quinta-feira. Um dia que nada diz. Nem no fim-de-semana, nem no início, nem sequer no meio da semana. É um processo tão simples que lhe fez pensar o quão frágil é a vida. Vários botões e dispositivos são desligados e sente-se a última réstia de vida e abandonar o corpo. Pareceu-lhe ver os músculos da cara descontrair um pouco. Não que houvesse tranquilidade mas pelo menos a neutralidade da inexistência de dor. Quis acreditar que pelo menos ela já não sofria. Mas ele não conseguia não sofrer. O amor é egoísmo. Até no sentimento. Julgamos sempre sofrer mais que os outros. Quase a culpava de lhe deixar o sofrimento para ele. Não é assim que acabam as estórias de amor. No dia seguinte ao funeral, um domingo, matou-se. Esta poderia ser uma estória de amor. Mas não foi…
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