I
Acordo, sobressaltado, coberto em suor. Olho por momentos o relógio. Vinte minutos para a primeira aula. Levanto-me vagarosamente, tentando não pensar no pesadelo que me atormenta no último mês. Desde o maldito acidente! Arrasto-me até à janela, levanto o estore e espreito lá para fora. Uma típica manhã de Inverno. Não chove mas o céu cinzento convida a ficar em casa. Apenas um dia como outro qualquer. Caminho até à casa de banho, onde tomo um duche rápido. Olho-me ao espelho e pergunto-me se valerá a pena cortar a barba. Acho que não! Talvez se o aspecto exterior for mau, o desconforto interior se atenue. Volto à janela e fumo um cigarro. Sem nada no estômago, o cigarro cai-me mal e o meu humor piora.
Começo a andar devagar, alienado. Chegarei tarde mas nem isso me importa. Quando dobro uma das esquinas, não olho em frente e choco com alguém. Papéis e cadernos espalham-se no chão.
- Só me faltava isto para continuar este dia perfeito! - resmungo, enquanto vou apanhando papéis.
- Tenho a sensação que o mau humor começou com uma má noite! Ou noites… - responde-me uma voz feminina.
Levanto os olhos para responder mas fico fixado. À minha frente está uma mulher com vinte e muitos anos, cabelos escuros e olhos esverdeados. Tinha um aspecto prático apesar das roupas formais…
- Bem, como estou cheia de pressa, fazemos o seguinte: tem aqui o meu cartão, se ficar com algum documento meu, agradeço que o envie. - disse, levantando-se e afastando-se sem dar hipótese de resposta.
Apanho o resto dos papéis e corro para a Universidade. É claro que chego atrasado.
Só na hora do almoço (ou seja, uma sandes e um sumo), é que volto a pensar naquilo. Procuro nos meus cadernos e encontro documentos que não eram meus. Ela devia ser Relações Públicas de alguma empresa, porque alguns tinham nomes de pessoas e instituições. Olho várias vezes o cartão, lendo e relendo as informações. A morada era da periferia, de um daqueles bairros novos de vivendas. Decidi ir lá ao fim da tarde. Aquela figura fascinava-me.
Ж
Passei a tarde distraído. Apanho um autocarro e encontro a morada perguntando a um velhote. São quase oito horas e a luz é escassa. Paro em frente à casa. É uma casa grande e muito bonita. Tem algumas luzes acesas. Abeiro-me da caixa do correio para ler a placa: Diana Guerreiro.
- Bem, casada não deve ser! - constato em voz baixa.
Enquanto me aproximo da porta, lembro-me da figura e do nome. Realmente, o nome da deusa grega da caça assentava-lhe como uma luva. Os cabelos rebeldes e o ar desembaraçado davam-lhe uma beleza invulgar. Toco, a medo, a campainha. Tem uma melodia comprida e agradável. Esperava alguém em trajes menos formais, mas tenho uma surpresa maior:
- Sim, posso ajudá-lo? - pergunta numa voz quente.
Fico parado a olhá-la. Veste apenas um roupão turco e o cabelo molhado ainda pinga.
- Eu… quero dizer, nós… hoje de manhã… - gaguejo.
- Calma, então! Foste tu ou fomos nós? – o discurso feito na segunda pessoa levou a acalmar-me.
- Eu sou a pessoa que chocou consigo hoje de manhã. Disse-me que se ficasse com algum papel seu, para o enviar. - expliquei-me.
- E decidiste fazer uma entrega pessoal? - respondeu em tom provocatório.
- Pensei que algum podia ser urgente. - falo como se tivesse sido apanhado em falta.
- E pensaste muito bem! Vejo que estás muito mais bem-humorado. - riu.
Ia replicar, quando um cheiro intenso e conhecido encheu-me as narinas.
- Por acaso, está a cozinhar lasanha? - pergunto, sabendo de antemão a resposta.
- Estou! Escusas é de me tratar por “tu”! - brinca - Eu já me deixei disso. Como pareces um apreciador, como eu exagerei na dose e como me falta companhia, tenho todo o prazer em te convidar para jantar! - e reforça o convite, abrindo a porta totalmente.
O convite é irresistível. Entro numa sala ampla e decorada com bom gosto. Os vários objectos identificavam as viagens da dona da casa. A minha observação é interrompida…
- Põe-te à vontade que eu vou vestir algo mais decente. Podes ir escolhendo o vinho. - acrescentou.
Reparo pela primeira vez num armário onde estão várias garrafas alinhadas. Começo a procurar um bom vinho. Não sei se devo escolher verde ou tinto, por isso pego numa de cada. Ela demorou pouco a voltar. Veste uma saia comprida que lhe favorece a anca. A camisa branca tem vários botões desapertados, o que dá asas à minha imaginação. O cabelo já está seco e usa só um pouco de maquilhagem. Não consigo deixar de a olhar.
- Então, já escolheste o vinho? - pergunta, fingindo não ver o meu olhar fixado.
- Já! - saio da hipnose, agradecido por ela não ter dito nada – Não sabia se devia escolher branco ou tinto, escolhi uma de cada. Mas o branco não está fresco.
- Ah, um conhecedor! Fazemos assim, bebemos o tinto primeiro, enquanto o branco refresca no congelador. - pega nas garrafas - Ah, escolheste bem. Pelos vistos, sabes de vinhos. - esta frase funciona como convite a falar de mim.
- Mais ou menos! Disse-te que gosto muito de comida italiana, - sigo-a até à cozinha - e escolho os vinhos em função disto.
- Ora bem, a lasanha está pronta!
Abre a garrafa, enquanto ponho mais um prato na mesa.
É incrível o desembaraço dela. Está em casa com um perfeito estranho e para além de tudo, age como se fosse normal. Começo a pensar que ela é a melhor coisa que me aconteceu há já muito tempo.
Começamos a jantar. A comida estava óptima e a conversa ainda melhor. Não ficamos pelas duas garrafas, nem pelas três, nem pelas quatro. Tomamos café e comemos gelado. A língua foi-se soltando e os sentidos cada vez mais despertos. Decido lavar a loiça como retribuição.
- É assim, nasci numa vila do interior, vim estudar para cá e tive a sorte de arranjar logo emprego. Pagam-me bem, faço o que gosto e vivo onde quero. Sinto-me bem! - desabafa.
- O que mais me custa a acreditar é como uma mulher como tu não tem namorado ou marido? - pergunta, enquanto arrumo o último prato.
- Tive alguns namorados que se revelarem desastres e depois deixei de lhe dar importância. - vamos até à sala, onde ela acende a lareira.
- Mas não sentes faltas? - estou verdadeiramente curioso como uma mulher daquelas pode estar sozinha.
- De quê? De ter alguém com quem partilhar as coisas boas? De alguém que me dê afecto? Claro que sim, mas desisti de procurar.
- Desististe?
- Sim, acredito que não tenho de procurar para encontrar.
- Acreditas que vais chocar com alguém especial? - a palavra sai-me directa sem que me aperceba e sinto-me embaraçado.
Uma gargalhada alta e bem-humorada é a primeira resposta.
- “Chocar” é uma palavra interessante! E tu? - desvia a conversa, e ainda bem - Conta-me mais coisas sobre isso.
- Penso durante alguns instantes. Ela merece que conte a verdade mas não agora.
- Eu? Sou de uma cidade daqui de perto e vim estudar para cá. E aqui estou! - não me apetece contar muito mais. Não hoje.
- Ah, uma história simples! - tenho a certeza que ela quer perguntar mais coisas, mas não me obriga a nada. Diz apenas:
- És muito misterioso! - parece-me um elogio.
- Isso é bom ou é mau? - o ambiente, a música, o vinho, ela…
Inclino-me e beijo-a a medo. Ela sente isso e puxa-me para ela. Apesar do vinho, apesar da surpresa, lembro-me de tudo. Pego nela ao colo, subo as escadas, entro no quarto. Ela manda-me sentar na cama. Uma cama baixa, grande. Ela acende velas e começa-se a despir lentamente. Àquela luz, o corpo perfeito dela torna-se uma visão… Puxo-a para mim, mas ela afasta-me gentilmente. É ela quem manda. E eu deixo-me conduzir…
II
As semanas seguintes foram fantásticas. Voltei a ganhar vontade de estudar, de sair, de viver. Era um prazer descobrir todos os dias uma coisa nova na Diana. E só coisas boas. Senti-me a apaixonar, sem receio nenhum de me magoar. Encontrava-mo-nos ao fim da tarde, jantávamos e depois ou saíamos ou ficávamos em casa. De qualquer das maneiras, estávamos sempre bem porque estávamos juntos. Com ela sentia que podia conversar sobre tudo. Para além de inteligente, ela era bastante madura. As opiniões dela eram sempre sensatas e acertadas. Sempre tive um certo fascínio por mulheres mais velhas e com ela tudo parecia perfeito. Perguntei-lhe, certa vez, o que é que ela via em mim.
- Não sei! Desde o primeiro momento que gostei de ti. Apesar de seres novo, parecia que tinhas o peso do mundo dentro de ti. Os teus olhos tinham uma tristeza infinita. Parecias atormentado! E foi essa tristeza que me atraiu. Mas depois do primeiro dia, tudo pareceu diferente. Pareces-te mais com alguém da tua idade. És jovem, divertido, extrovertido, alguém que gosta da vida e nada que lhe pode acontecer, pode mudar isso. Tens joie de vivre! E apesar de ter sido o teu lado sombrio que me chamou a atenção, gosto mais do teu lado alegre. Estava a precisar de alguém que gostasse da vida, que gostasse de si e que gostasse de mim. - inclinou-se e deu-me um beijo longo, doce, suave…
Ela tinha tirado o retrato perfeito! Pensei muitas vezes se não devia contar o porquê do meu lado mais sombrio. Sabia que ela me saberia ouvir e que saberia o que dizer. Tenho a certeza que tudo seria ultrapassado com a ajuda dela! Mas desisti sempre. Ou melhor fui sempre adiando. Várias noites depois de ela adormecer, ficava a vê-la dormir. A minha guerreira em repouso. Uma mulher que lutou por aquilo que desejava e tinha conseguido atingir tudo o que queria. E, que apesar disso, começava cada dia à procura de um novo objectivo, uma nova meta. Por isso o sono dela parecia ser tão calmo, tão feliz. O sono dos justos! Quanto a mim, já não tinha pesadelos, mas o meu sono não era tranquilo. Era como se existisse alguma coisa que ainda estava por resolver.
Ж
Sentamo-nos numa esplanada da zona ribeirinha. Temos de aproveitar um sábado de sol em Março. Entretidos com a conversa, com as pessoas que passavam, a tarde corria perfeita. De repente, uma voz por trás de mim.
- Ainda não passaram três meses da morte do meu irmão e já aqui estás a divertir-te! Pareces estar muito contente.
Volto-me, mas a luz do sol cega-me. Aos poucos os meus olhos habituam-se. Era…
- Joana… - não consigo dizer mais nada.
A alegre e simpática Joana. A Joana que vi crescer e que considerava como uma sobrinha. Afinal, ela era irmã do meu melhor amigo. Mas a Joana que tinha à minha frente não era a doce Joana, era alguém sombrio e amargurado.
- Pelos vistos, o luto passa-te rápido. Parecias tão abatido no funeral e já aqui estás todo contente. - a voz era cortante.
- Joana… - não conseguia articular mais nada.
Estava fixado no rosto de uma rapariga que costumava gostar de mim e falar comigo sempre que me via.
- Ainda por cima, acho que pela forma como tudo aconteceu, devias ter mais respeito. Mas vejo que já te esqueceste do que aconteceu.
- Eu não tive culpa! - sentia tudo a andar à roda e a dor de cabeça a voltar.
- Diz isso aos meus pais. Ou melhor, diz isso ao meu irmão. Adeus!
Vi-a afastar-se decidida. Tudo parecia ruir…
III
Ouço a campainha tocar. São seis da tarde. Levanto-me da cama.
- Abre-me a porta! - a voz dela é firme.
Carrego no interruptor e abro a porta de entrada. Volto para o quarto. Acendo um cigarro. Ouço-a entrar, batendo a porta.
- Quem é que pensas que és? Primeiro, está tudo bem. Depois, aparece uma rapariga qualquer a falar do irmão e dos pais. A seguir desapareces. Tento ligar-te, falar contigo e tu, nada. Agora chego aqui e vejo-te nesse estado deplorável. Ah, e pensei que tinhas deixado de fumar! - a ironia da última frase passa-me ao lado.
Apesar de ser a pior altura de todas, decido contar-lhe tudo. Mais para contar a alguém do que com a esperança de reatar a relação.
- Aquela que tu viste, - as palavras saem-me frias, sem emoção - chama-se Joana, e é irmã do meu melhor amigo. Quando me conheceste, disseste que eu era sombrio, pois bem, um mês antes ele tinha morrido. - acho que ainda não tinha dito isto a ninguém.
- Mas, o que é que aconteceu?
Ela quer saber tudo. Tenho de contar.
- Nós os dois tínhamos ido sair, e bebemos uns copos. Estava a chover bastante. Ele disse que conduzia, mas estava em pior estado que eu. O carro derrapou e embatemos contra uma árvore. Eu perdi os sentidos e quando acordei, vi-o morto a meu lado. Ainda tinha os olhos abertos. Esses olhos aparecem-me todas as noites em pesadelos. - tremo, ao viver tudo de novo.
- Eu compreendo que te sintas em baixo, mas tens de continuar. Não me digas que achas que foi culpa tua? - a pergunta sai de surpresa.
- Mas é culpa minha! Eu sei que ele conduzia melhor que eu, mas nunca devia ter deixado que ele conduzisse. Nós fizemos isso vezes sem conta, eu devia ter previsto. Eu devia ter imaginado… A Joana tem razão! - enterro a cabeça nas mãos.
- Tem razão, o tanas! É verdade que foi uma inconsciência, mas se estavam os dois bêbados, só podiam era não ter pegado no carro. Não interessa quem ia a conduzir. - a lógica dela não é a minha.
- Não! Eu devia ter insistido, eu devia tê-lo mandado parar. A culpa foi minha! - as palavras da Joana, o olhar dela, a imagem dos pais dele no funeral, nada me sai da cabeça.
- Só podes estar a brincar! A culpa é tua?! Essa explicação não tem pés nem cabeça. Sé sentes culpa porque ele morreu e tu sobreviveste. E isso não tem lógica. É claro que foi mau ele ter morrido, mas tu não podes viver assim o resto da tua vida. Ele não ia querer isso, eu não quero isso. Não consigo viver com alguém que não quer viver. Disse-te que me apaixonei por ti porque adoras a vida. Não vou agora dizer que deves viver agarrado à morte. Tens de escolher se queres viver comigo ou agarrado ao fantasma dele. - sempre firme, sempre decidida.
Para ela não pode haver meias medidas, ou sim ou não, ou preto ou branco. Eu também era assim, directo, sem hesitações. Mas aquilo mudou tudo.
- A culpa foi minha! Não entendes? Ele era inteligente, divertido, cheio de vida, toda a gente gostava dele. Era eu que devia ter morrido… - não sei se sinto mesmo o que digo ou se a quero mandar embora.
- Tenho pena que sintas isso. Sabes porquê? Porque quer dizer que no acidente não morreu apenas o teu melhor amigo. Morreram os dois!
Estou de costas para ela e as palavras ecoam nos meus ouvidos. Pressinto-a a ir embora e ouço a porta a bater com estrondo.
Ж
Não sei se passam segundos, minutos, horas. Levanto-me e vou até à janela. Olho lá para fora. Um dia cinzento, sem chuva mas com nuvens. Apenas um dia como outro qualquer.
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