Últimas cartas do Mundo

I

O Pai abre o envelope e lê:

“Querido Pai,
Desculpa-me! Sabes que não é meu feitio desistir. Sei que te disse que o suicídio é para cobardes. Mas desisto. Serei um cobarde. A vida levou-me a negar tudo o que acreditava. Aquilo que começou como desespero, passou a apatia, seguida de alheamento e por fim desistência. Foi um processo de muitos meses. Longos e penosos.
Sempre olhei para ti com respeito e admiração. Mesmo em momentos de discórdia, de discussão. Não eras o homem perfeito mas tinhas uma escala de valores que não quebravas e que tomei como exemplo. Queria ser uma versão melhorada de ti. Tinha aquela arrogância adolescente de que seria um homem melhor. Sem os defeitos que te apontava e criticava. Mas tinha-os. E se calhar ampliados.
Talvez por isso tenha falhado. Compreendi que em vez de ter melhorado, piorei. Não soube ser feliz e fazer felizes as pessoas à minha volta. Um homem deve ter um trabalho que o sustente e que sustente a sua família. Deve ser um pilar que nada abala e onde tudo se apoia. Não fui, não sou, nem serei.
Tenho vergonha. Talvez seja essa a razão maior. Um homem que se envergonha ao olhar o espelho. Pior só quando comecei a ver a vergonha na cara de todos vocês. Pensava que era a pena o pior sentimento encontrado na cara de quem nos rodeia, mas não. A vergonha envergonha. Transforma um homem numa caricatura de si mesmo.
Nisso me transformei. Uma caricatura. Nem isso, porque normalmente uma caricatura faz rir. Eu apenas inspiro vergonha. E com a vergonha chega a repulsa, o afastamento. E antes que vocês se afastem ou sintam necessidade de se afastarem, sou eu que me afasto. Definitivamente e sem volta. Como devem ser os afastamentos. Sei que não vais entender as minhas razões e o meu acto. Mas acredita em mim, é para o bem de todos.
Adeus!
O teu filho”

II

A Mãe abre o envelope e lê:

“Querida Mãe,
Perdoa-me! Nunca pensei que te abandonaria. Uma Mãe nunca deveria ver o filho desaparecer. É contra natura. É uma aberração. Um filho deve perpetuar o legado dos pais. Mas eu não consigo.
Este peso de ser filho único entristece-me. As lágrimas caem quando penso que comigo morre toda a vossa linhagem. Falhei enquanto filho e enquanto veículo dos nossos genes. Ainda iria a tempo, dir-me-ás. Bem sei, mas não consigo. Não sei viver a minha vida, quanto mais criar uma nova vida.
Foste sempre a minha base, o meu chão. Mas nos últimos tempos parece que o chão me falta. Sinto que dei um passo e surgiu um abismo. E agora cabe a mim bater no chão. Serei eu a escolher o momento de sentir o baque final. Como um pesadelo que em vez de acordar, adormeço de forma definitiva.
Sei que não tenho o direito de te fazer isto. As tuas lágrimas cairão e se tivesse que as ver, morreria de tristeza. E de vergonha. Vergonha de ter fraquejado. De não ter tido essa tua força sobrenatural que tudo enfrenta com um sorriso. Gostava de ter essa coragem hercúlea. Soubeste resistir a todas as dificuldades sem quebrar. Eu não. E tenho medo que esta minha falha te comece a matar interiormente.
Até nisso sou um fraco. Porque sei que quem sofre é quem fica vivo. Mas quero acreditar que o tempo cura tudo. Até a minha cobardia. Espero até ser esquecido. Nas conversas, nos pensamentos. Prefiro ser esquecido na morte do que lembrado na vida. Talvez o teu coração de mãe, eternamente bondoso, possa perdoar esta loucura derradeira de um homem que não soube ser filho, apesar de nada te poder apontar. É para o bem de todos.
Adeus!
O teu filho”

III

A Amada abre o envelope e lê:

“Meu Amor,
Esquece-me! Aquele que te amou e a quem amaste, não te merece. Não soube ser o homem que precisavas e merecias. Não soube proteger-te. Tornar-me o pilar da tua vida. Criar contigo um filho que partilhasse os nossos genes. Falhei em tudo.
Muitas vezes me odiei ao ver-te desesperar comigo. Vi que esperavas muito de mim e eu não soube corresponder às tuas expectativas. Se calhar eram expectativas normais, mas eu sou um falhado enquanto amante e homem. E esse falhanço espelhado na tua cara, é-me impossível de suportar.
Não penses que me mato por tua culpa. Assumo toda a culpa deste acto indesculpável. Eu é que sinto que não te devo maçar, não devo ocupar um espaço na tua vida que não mereço. Sinto que te liberto para teres uma vida melhor e procurares um homem que te ame melhor. Sim, porque provavelmente não te soube amar. Amei-te muito mas sem critério. Não soube transformar-te no chão que a minha mãe tinha semeado.
Eras a minha ligação à terra, mas eu comecei a voar demasiado, até que a gravidade deixou de ter efeito sobre mim. E perdi-me. A minha mente perdeu-se para sempre. Sem retorno. Talvez tivéssemos sido felizes se eu fosse outro. Mas não sou. Sou este. Um embuste. Alguém que não soube representar o seu papel no mundo. Um actor sem talento para viver. E agora me demito a mim mesmo.
Sei que chorarás por mim. Mas irá passar. Sei que irás pensar se poderias ter feito algo diferente. Não! Fui eu que fiz tudo errado. Não soube ler as instruções da vida e segui-las. Fui um bio-analfabeto. Talvez saiba morrer melhor do que viver.
Quero que sejas feliz sem mim!
Adeus!
Do teu amado”

IV

É o Pai que irrompe pela casa, mas é a Mãe que o encontra morto na cama. A sua Amada encontra um envelope na mesa ao lado da cama. Abre-o e lê em voz alta.

“Ao filho que nunca terei,
Desculpa-me, perdoa-me, esquece-me! Abandono-te ainda antes de existires. Sou oficialmente o pior pai do mundo. Porque nem sequer fiz a minha parte.
Trato-te por filho mas também te via como uma bela menina. Sim, porque tive ambição de ser pai. De ver nascer algo que tinha o meu ADN. De ver crescer alguém que me visse como um modelo. Outra coisa que tive medo de falhar. E desisti antes sequer de ter começado.
Provavelmente irás existir na barriga da tua mãe, mas já não carregarás o fardo de ser meu filho. Serás com certeza mais feliz. Com alguém que será um pai melhor do que eu poderia ser. Irás nascer, crescer, ser feliz! Sem mim…
Quando existires, cuida da tua Mãe e do teu Pai. Ama-os sempre. E quando descobrires alguém que ames, ama-a muito e bem. Sem medos nem receios. Eu falhei mas tu irás ser bem sucedido. Ou sucedida. Acredito em ti…
Adeus!
Do teu Pai inexistente”


Fim

3 comentários:

AUFDERMAUR disse...

A nível de escrita gosto de todos os posts que li até ao momento mas a nível de enredo este é o meu preferido. É original e está muito bem conseguido. Mesmo aquelas partes que parecem um pouco lamechas e infantis correspondem ao discurso utilizado por grande parte dos suicidas.

Pessoalmente, acho que deves continuar a escrever porque o fazes bem e só com a prática é que se atinge a perfeição.

Anónimo disse...

Comecei a ler-te neste fim de semana, com calma. Fui ficando. Obrigada pelos textos.

Confesso Amor disse...

Descobrir o teu Blog hoje...fez o meu dia...

Escreves de forma sincera e serm reservas...de forma nua. E eu gosto!

Parabens

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