Já de saída do hospital, depois
de visitar um colega do jornal, operado a um joelho. Maleita de quem joga
futebol, já sem idade para isso. Como sempre perdi-me nos corredores, quando a
vejo. C.! Alta, morena, sorriso sempre presente, a combinar com a moldura
perfeita de sardas que rodeiam os seus meigos olhos castanhos. Conheci-a há
meia dúzia de anos quando decidi tirar um mestrado para fazer jornalismo de
investigação ligado à Psicologia. Ele era ainda uma menina e eu já trintão, por
isso nunca nada se passou. Agora era uma mulher de 25 anos. E que bonita
mulher. Sorrio, porque ela sempre me fez sorrir. Aproximo-me e toco-lhe no
ombro:
- Os olhos mais meigos que
conheço!
Reconhecendo a voz e o elogio,
vira-se a sorrir.
- Só podias ser tu!
Caímos nos braços um do outro,
deixando a saudade morrer num longo abraço. Sinto que algo a perturba. Quando
se solta do abraço, os olhos estão molhados.
-Oh, o que tens, doce? – pergunto
imediatamente.
Sabia que ela era uma menina
sensível e sempre preocupada com os outros. Falamos muito quando ela escolheu
Psicologia da Saúde. Tive medo que os problemas inerentes a essa área lhe
quebrassem o sorriso.
- Não é nada que não devesse
estar habituada. Mas já sabes que sou uma parva sentimental.
- Mas o que se passa?
Coloca o braço dela no meu e
pousa a cabeça no meu ombro. Percebo então que se prepara para falar algo que
lhe custa, pois era assim que pedia mimo. Começamos a andar enquanto fala.
- Eu sei que tu me tentaste
avisar muitas vezes que esta área é complicada. Que se trabalha com uma
população difícil. Mas eu tenho conseguido gerir as coisas e sinto-me feliz no
que faço.
-Fico contente que estejas bem. –
o passeio pelos corredores continua.
-Pois, mas nos últimos tempos tem
sido muito mais complicado. Temos tido um aumento enorme… - a voz quebra-se. As
lágrimas caiem. Pego no meu lenço e dou-lhe.
- Shhh! Não precisas falar agora.
- Oh, é que me faz muita
confusão. Muitos idosos têm sido abandonados. Uns são internados, outros são
simplesmente deixados no hall de entrada. Claro que o hospital tenta encontrar
uma cama para eles, mas depois tem de ser transferidos. Quem é que achas que
acompanha os casos? – as palavras saem agora de rajada.
- Tu… - nem tive tempo de acabar.
- Pois, sou eu! E custa-me tanto.
São pessoas tão queridas e doces. Tão frágeis…
Compreendo agora o porquê dela
estar assim. Uma menina que não gosta de ver ninguém sofrer, a acompanhar
idosos abandonados?
- Percebo o quanto te deve
custar. Logo tu…
- Já sei, tipo, uma chorona!
- Não, uma pessoa que se
preocupa.
- E há pouco estive no quarto do
último caso desses que tivemos. Por isso me encontraste neste estado.
- Um idoso?
- Uma idosa. Deixaram-na na sala
de espera com um bilhete com o nome e a idade.
- O quê? – a imagem deixa-me
louco.
- Entendes agora? Deixada sozinha
com um papel a dizer “Júlia, 84 anos”.
- Ela não se lembra onde mora?
- Começa a apresentar sinais de
demência e é complicado lembrar de certas coisas.
- Percebo.
- Mas é uma idosa de uma doçura
extrema. Trata-me por princesa.
- Ahah! Por isso gostas dela.
Rimos os dois. A minha veia
jornalística dá-me uma ideia.
- C., estou a ter uma ideia.
- Ui, se bem me lembro, as ideias
costumam ser muito originais.
- Ora bem, não posso dizer que
não seja. A idosa não tem visitas, certo?
- Certo.
- E vai estar internada cá,
certo?
- Uma ou duas semanas. Depois
terá que ir para um lar.
- Que me dizes de visita-la
algumas vezes? Falar com ela. Assim pode ser que ela se lembre das coisas.
- E o que é que tu ganhavas com
isso?
- Percebia melhor porque são
abandonados os idosos e até podia fazer uma reportagem sobre esse problema.
- Hum, já sabia que tinhas de ter
alguma contrapartida.
- Oh, não é contrapartida. Toda a
gente fica a ganhar.
- Bem, como sei que tu és bom
conversador e ouvinte, vou permitir. Mas eu tenho de te estar presente.
- Por mim, tudo bem. Assim estou
com duas princesas ao mesmo tempo.
- Sempre o mesmo…
*
“Grandma’s hands clapped in church on Sunday morning
Grandma’s hands played the tambourine so well.
Grandma’s hands used to issue out a warning,
She’d say, “Billy, don’t you run so fast,
Might fall on a piece of glass,
Might be snakes there in that grass”,
Grandma’s hands.” (Bill Withers)
Passou o fim-de-semana e chegou segunda-feira. Dia da primeira visita. Encontro-me com C. no gabinete dela e pergunto como é que a idosa tinha passado estes dias.
- Bem, as noites são mais
complicadas. Nessa altura sente-se mais desorientada.
- Achas que vai ser bom falar com
ela?
- Se não achasse que lhe ias
fazer bem, não to permitiria.
- Sim, senhora doutora. –
concordo a rir.
Caminhamos até ao quarto. Vinte e
dois. Quando entramos, está deitada, parecendo dormitar. Talvez pelo barulho ou
pela nossa presença, abre os olhos. Uns olhos verdes. Escuros, mas vivos. Mal
vê C., sorri de forma quase maternal.
- A minha princesa.
- Como está a D. Júlia? Sente-se
bem?
- Agora estou melhor, já que vejo
juventude à minha volta.
Tenho de sorrir. A primeira
impressão não pode ser melhor. Baixa, gordinha, o cabelo curto ligeiramente
grisalho, e um sorriso que ilumina uma sala inteira. Começo a entender o que
tinha abalado C.
- D. Júlia, hoje vamos fazer algo
diferente. Este meu amigo e eu vamos falar consigo durante um bocadinho. Está
bem?
- Claro que sim. Mas vão fazer
perguntas difíceis? É que a minha cabeça já não é o que era. – sorri.
Com um gesto subtil, peço a C.
para não responder. Pego numa cadeira e sento-me ao lado dela. Sorrio e ela
sorri-me de volta.
- Não vou fazer perguntas
difíceis. Só quero conhecer melhor a menina Júlia.
- A menina? – ri com gosto – Já
não me chamavam menina há tantos anos.
- Ahaha, sabe que eu tenho esta
mania de chamar menina às mulheres que gosto.
- Ah, então chame, menino, chame.
Para além de bonito, é um galanteador. – e pisca o olho a C.
- Tenha cuidado que é um
atrevido. – C. decide entrar no jogo da cumplicidade feminina.
- Oh, então? – protesto, fingindo
indignação.
- Oh, minha princesa, já não é
para os meus dentes. Até porque agora uso placa. Já tu, não deixes escapar este
príncipe.
- Então, mas eu não tenho voto na
matéria? Falam de mim sem eu dizer nada? – brinco.
- Meu menino, nos assuntos do
coração, são as mulheres que mandam.
- Olhe, está a ver? São essas
coisas que quero saber. Quero que me conte coisas sobre si e sobre a sua vida.
- Ahah, queres ouvir as estórias
de uma velha tonta?
- Nem velha, nem tonta! É a
menina Júlia que me vai contar coisas boas.
- Então o que queres saber? A
minha cabeça já não é o que era.
- Não se preocupe. Vá falando,
que nós vamos ouvindo com todo o gosto. Olhe, conte-me coisas da sua infância.
- Ui, meu menino, isso já foi nos
tempos antigos. – para um pouco e sorri – Eram outros tempos. As pessoas
queixam-se muito agora mas eram tempos piores. Havia mais pobreza e fome. Mas
fome mesmo. Felizmente na nossa casa nunca passamos por muitas dificuldades.
Eramos vários irmãos e irmãs mas sempre houve o que comer. A guerra afetou
muito o nosso país, mesmo que digam que não. Nós tínhamos com que viver porque
cultivávamos e criávamos animais. Mas havia muita pobreza. Nós chegamos a ter
uma ou duas criadas, que eram raparigas novas da aldeia. Quando chegavam lá
casa, comiam com tanta vontade que só podia ser porque passavam fome em casa.
Depois comiam normalmente, mas os primeiros dias eram sempre assim. Lembro-me
de uma rapariguinha, não devia ter mais de 12 anos. Apesar de ter comido quando
chegou, chorou a noite toda e a manhã do dia seguinte. Tinha saudades de casa.
Teve de ir embora…
- E nunca mais souberam dela?
- Oh, menino, não é como agora.
Não havia essas modernices todas. As notícias mais frequentes eram as mortes.
- Pois, imagino. Tudo devia ser
diferente. As brincadeiras…
- Claro! Brincávamos muito na
rua. Mas também ajudávamos muito em casa. Como eramos muitos irmãos, estávamos
sempre juntos.
- Deviam ser muito cúmplices.
- Gostávamos muito uns dos
outros.
- E que sonhos tinha nesses
tempos?
- Ahahahah! – o seu riso
contagia-me e pisco o olho a C. – Os nossos sonhos eram diferentes dos de
agora. Durante a nossa juventude queríamos terminar a escola e encontrar alguém
que nos fizesse feliz. Vocês agora tem mais oportunidades e ainda bem. De
estudar, viajar, conhecer mais coisas. São tempos diferentes. Não havia tanta
liberdade. Os nossos pais tinham-nos em rédea curta. Senão já sabíamos que
íamos levar uma lambada. Isso e rezar uns pais-nossos.
- Sim, havia muito mais
influência da Igreja.
- E por um lado só fazia bem.
Havia mais regras. Agora é tudo à sorte, uma confusão.
Troco um olhar com C. Não vale a
pena entrar em discussão sobre certas posições e a importância da Igreja na
sociedade. Tive uma educação católica. Fiz todos os passos, mas a certa altura
comecei a questionar várias coisas. E afastei-me. Costumo dizer que sou cristão
mas pouco católico.
- E a religião acompanhou-a
sempre?
- Claro. Acho que precisamos
sempre de ter algo que nos dê valores. E moral.
Vejo que C. está quase a intervir
por isso decido terminar a conversa.
- D. Júlia, acho que hoje já lhe
torrei muito a paciência. – digo, pegando-lhe a mão.
- Oh, meu querido, que nada. Eu é
que não entendo porque vocês querem ouvir uma velhota como eu.
- Não diga isso. Gosto muito de a
ouvir.
Eu e C. saímos do quarto,
deixando-a com um sorriso na boca.
- Acho que lhe pode fazer bem,
estas conversas…
*
“Grandma’s hands sooth the local unwed mother
Grandma’s hands used to ache sometimes and
swell
Grandma’s hands used to lift her face and tell
her,
She’d say, “Baby, Grandma understands,
That you really loved that man,
Put yourself in Jesus’s hands.”
Grandma’s hands.” (Bill Withers)
Passei o dia de terça-feira às voltas com outra peça do jornal, por isso só na quarta-feira tive hipótese de voltar ao hospital. Uma chamada rápida e entro no consultório de C. O ar carregado dela corta logo o meu sorriso.
- Então? Que se passa?
- A noite foi muito complicada.
Ontem teve muitos problemas respiratórios e desconfio que de uma infeção
pulmonar.
- Assim, de nada?
- Não é do nada! Provavelmente
uma gripe mal curada nos últimos dias e aqui piorou.
- Eu bem digo que uma pessoa no
hospital não ganha saúde. É sair daqui o mais rápido possível.
- Como podes calcular eu também
prefiro que as pessoas não estejam aqui. – o tom dela não é nada animado.
- Tudo bem, entendo. Mas achas
que não a posso ver?
- Podemos tentar. Não sei se vai
estar a descansar. Não quero que ela se canse.
Quando chegamos ao quarto Júlia
está com a máscara de oxigénio. Ia jurar que os olhos dela brilharam quando
entramos. A enfermeira diz-nos que está quase a terminar e que ela está cansada
mas bem. Chego perto dela e seguro-lhe a mão. Olho aqueles olhos doces que já
tanto viram. Passados alguns minutos, a enfermeira retira a máscara. As marcas
feitas pela fita na região lateral da face incomodam-me. Qualquer tipo de
sofrimento naquela mulher causa-me desconforto. Sinto que a objetividade
jornalística que me caracteriza desaparece com ela. Olho para C., que se sentou
do outro lado da cama e vai perguntando como é que ela se sente. Vai
respondendo devagar mas firmemente, C. quer certificar-se se ela quer continuar
a falar comigo. Ela percebe isso e sorri para mim, enquanto aperta a minha mão.
Não resisto a sorrir.
- Como está a minha menina Júlia?
Pronta para me aturar mais um pouco?
- Ahah! Oh menino, vocês é que me
aturam. Eu só digo disparates.
- Não diz disparate nenhum! –
intervém C.
- Ora nem mais! Só diz coisas
interessantes que gostamos de ouvir.
- Muito bem… E o que quer o
menino saber hoje?
- A D. Júlia já está uma
profissional. Já falamos sobre a infância. E depois?
- Depois… conheci o meu marido. É
uma estória engraçada. Naquela altura as coisas eram diferentes. Não havia essa
coisa de conhecer e namorar como agora. O meu marido e os amigos ouviram falar
que na nossa casa existiam muitas irmãs bonitas. E ele era suposto ficar com a
minha irmã mais velha. Mas lá gostou mais de mim e começamos a namorar.
Namoramos durante algum tempo e casámos. Estivemos casados durante quase
cinquenta anos. Acabou porque ele morreu. – para um pouco, os olhos ficam
marejados – Foi uma estória bonita. Coisas boas, coisas más. Com todas elas a
relação cresceu e amadureceu. A vida não é feita só de rosas. As pessoas de
agora não tem paciência para aguentar os espinhos. O mar fica sempre mais calmo
depois da tempestade…
- Agora as pessoas preferem
acabar as relações!
- Pois… É preciso tempo,
paciência. Eu chorei, eu ri, mas não desisti. Sim, porque há momentos que
apetecesse lançar um tacho à cabeça.
Não resistimos e rimos os três
durante uns momentos.
- É assim a vida, meus meninos!
As nossas lágrimas são salgadas porque escondem um mar de alegrias.
- Ui, D. Júlia, essa é de poeta!
– exclamo.
E mais uma vez rimos. De relance
olho para C. Sabe bem vê-la rir.
- E os seus filhos? – mal formulo
a pergunto, lembro-me da forma como foi abandonada na urgência. Provavelmente
um filho ou um neto. C. pensa o mesmo e trocamos um olhar preocupado.
- Ser mãe é como ser esposa. Tive
dois rapazes e duas raparigas. Deram-me trabalho mas são maravilhosos.
Temos um suspiro de alívio porque
não houve uma reação negativa. Não querendo confrontá-la já com o presente,
decido voltar atrás.
- Então, como foi ser mãe?
- Maravilhoso! Fui mãe aos 25
anos. Em nove anos tive os quatro. – penso como é incrível que o cérebro dela
se lembre destes pormenores – Em tempos difíceis. Vivíamos em ditadura. Não
havia muito dinheiro mas remediávamo-nos. Os miúdos eram muito seguidos por
isso ajudavam-se uns aos outros.
- Como era a vida em geral? No
país?
- Remediada! Já não havia tanta
fome mas também quase ninguém era rico. Toda a gente tinha o necessário para
sobreviver. Os miúdos andaram todos na escola técnica. Um até seguiu a
universidade. Demos a todos, tudo o que pudemos… - cala-se.
Não sei se as más memórias
estavam lá ou não. Sei que não me parecia bom continuar a conversa.
- D. Júlia, acho que merece
descansar por hoje.
- Ahaha! Já se cansaram de me ouvir?
Ou querem agora falar os dois? Sim, porque os dois ficam muito bem juntos.
- D. Júlia deu em casamenteira? –
C. decide por os pontos nos ii.
- Eu gosto de ver as pessoas a
namorar. Namorar faz bem.
- Concordo consigo.
- Está bem, mas não é comigo. –
C. não desarma.
- Oh menina, quando ser por ela,
já se apaixonou.
Rimos mais uma vez e eu e C.
despedimo-nos. Chego perto de Júlia e dou-lhe um beijo na testa.
- Oh, meu neto lindo… - fico sem
saber se é uma expressão de carinho ou já um sinal de confusão. Saímos com um
misto de tristeza e preocupação.
*
“Grandma’s hands used to hand me piece of candy.
Grandma’s hands picked me up each time I fell.
Grandma’s hands, boy they really came in handy.
She’d say, “Mattie don’t you whip that boy.
What you want to spank him for?
He didn’t drop no apple core,”
But I don’t have Grandma anymore,
If I get to heaven I’ll look for
Grandma’s hands.” (Bill Withers)
Mais uma vez o trabalho no jornal não me deixou ir ao hospital no dia seguinte. E nem no seguinte. E quando no fim-de-semana recebi o telefonema de C. a dizer que Júlia tinha piorado muito. Uma infeção respiratória tinha-a deixado muito debilitada. A memória tinha piorado. Disse que entendia que era melhor não voltar, mas C. disse o contrário. Não sabia explicar, mas achava que eu podia fazer-lhe bem. Perguntei se o bem seria para melhorar, respondeu-me que poderia ser para ir em paz. Fiquei destroçado. Chego na segunda-feira ao hospital quase antes da hora da visita. C. já está à minha espera no corredor. Os olhos estão molhados. Como detesto vê-la chorar.
- Então, como passou a noite?
- Muito mal, está a soro e
oxigénio… - a voz quebrou – Não sei se resiste muito mais…
- Tens a certeza que é bom vê-la?
– não resisto a abraça-la.
- Acho que lhe vais fazer bem… -
diz-me com a cabeça encostada no meu ombro.
Caminhamos ao longo do corredor e
antes de entrar no quarto, respiro fundo. Mal entro, quase tenho um ataque de
choro. Controlo-me mas por pouco. Lá se foi a objetividade. Júlia parece ter
encolhido. Como se a vida se fosse esvaindo daquele corpo. Aguento as lágrimas
e aproximo-me. Ela tem os olhos fechados. Sento-me na cama e seguro-lhe a mão.
Ela abre os olhos devagar, a custo. Mais uma vez quase choro, mas consigo
sorrir. Ela tenta falar mas a máscara não deixa. Olho a enfermeira e ela
ajuda-a retirar.
- Olá! – a voz é vagarosa,
arrastada, com a respiração pesada como pontuação – Já não vinhas há tanto
tempo.
Não faço ideia se é uma partida
da memória ou se de facto se lembra de mim. Vou acreditar que eu sou uma boa
memória. A respiração dela é irregular, assustadoramente funda. Como uma apneia
constante. A voz é débil. Pergunto-me a mim mesmo se estarei a fazer bem em
fazê-la falar. C. adivinha os meus pensamentos.
- D. Júlia, como se sente? Se
quiser deixamos que descanse.
- Oh, menina… - as pausas parecem
intermináveis - … já não descanso nada de jeito.
C. acena-me com a cabeça. Seguro
a mão de Júlia com mais força e olho-a nos olhos.
- Muito bem, D. Júlia! Estou aqui
para ouvi-la.
Um pequeno sorriso… Uma vitória…
- Que quer que lhe diga, menino?
- Como tem sido ter 70,80 anos?
- Sou uma velhota? – mais um
sorriso ténue.
- Alguém que viveu mais que nós…
- Pois, pelo menos em tempo. –
pausa.. para pensar ou para respirar… - Tem sido bom. É verdade que não tenho
as forças como tinha. Os problemas de saúde são muitos. Entendo que uma velha
de 80 anos só sirva para atrapalhar.
Olho para C. Esta frase dita
assim faz pensar que Júlia sabe que foi abandonada. Antes de podermos perceber,
ela continua.
- Fui casada, amei o meu marido…
Tive filhos, amei os meus filhos… Tive netos, amei os meus netos… Tenho de
aceitar que tive uma boa vida.
Começa a parecer-me que Júlia
sabe que foi abandonada. Se sempre soube ou se a memória lhe está a lembrar
isto, não sei. O que sei sobre o Alzheimer diz-me que há momentos de lucidez.
Antes que consiga processar tudo, ela continua.
- Vi muita coisa. Muita coisa a
mudar. No país, no mundo. Nas pessoas… As pessoas estão diferentes. Antes
conhecíamos pouca gente mas gostávamos dela. Tomávamos conta. Tínhamos pouco,
dividíamos mais. As pessoas nunca eram vistas como peso. Fossem vizinhos,
filhos, netos… Tomava-se conta… - os olhos ficam húmidos. Está ressentida.
Tenho de arranjar forma de mudar a situação. – O mundo está diferente. Há
coisas piores e outras melhores. Mas há sempre pessoas a cuidar de quem gosta.
Eu e a doutora estamos aqui porque gostamos de si.
- Eu não disse que não havia
pessoas boas. Mas havia mais…
- Não pense nisso. A D. Júlia não
acha que é feliz?
A pausa dura agora mais tempo.
Dura um ou dois minutos. Quase consigo ver as várias emoções a passar pela sua
cara.
- Sou. Não posso ser injusta.
Tive mais momentos felizes do que infelizes. Há pessoas piores que eu. Olhando
para trás tenho de sorrir. Amei e fui amada. Vivi. Fui feliz e sou feliz. –
disse estas frases de uma vez, por isso agora respira com dificuldade. Deixo-a
acalmar-se, segurando a mão. Uma pergunta surge-me no pensamento. É uma
pergunta forte que tanto pode levar à tranquilidade como à angústia. C. vai
matar-me mas tenho de a fazer.
- A D. Júlia tem medo da morte?
Sinto C. a parar de respirar e a
cravar-me os olhos. Nem me atrevo a olha-la. Os meus olhos estão nos olhos de
Júlia. A pergunta não a assustou. Estava pensativa.
- Não, nenhum. Vivi o que tinha
de viver. Se tiver que ir que seja tranquilamente. Podia ser já hoje…
- Não diga isso. Quer perder a
nossa companhia?
- Eu não disse que quero morrer.
– um ligeiro sorriso – disse que não tenho medo. Até porque gostava de estar cá
para vos ver aos dois juntos. – o sorriso aumenta.
- Oh, D. Júlia, não tem emenda.
Nós somos só amigos.
- Meus queridos netos, vocês vão
ficar juntos. – um súbito ataque de tosse faz com que a enfermeira diga que ela
precisa descansar. A máscara de oxigénio volta a ser colocada. Levanto-me,
inclino-me sobre ela e dou-lhe um beijo na testa.
- Um beijo de respeito, menina
Júlia! Veja se melhora.
Saímos do consultório.
- Sabes que abusaste, não sabes?
- Sim, sei. Mas ela respondeu
bem.
- Eu sei. Estou preocupada com a
saúde dela.
- Pois, esperemos que consiga
melhorar. Reparaste como não houve grandes falhas de memória?
- Sim, o Alzheimer tem momentos
de lucidez. Raros, mas existem. Por isso achei que as tuas perguntas fossem
boas para ela.
- Espero que sim…
*
A vida não tem muitas vezes um final feliz. Júlia morreu nessa noite. Tranquilamente, durante o sono. Espero que os seus desabafos comigo tenham ajudado a ir em paz. Ah, eu e C. somos só amigos. D. Júlia enganou-se, mas nós perdoamos…
1 comentários:
Que bela história... queria comentar mt coisa mas acho que ainda estou a absorver tudo xD
Senti-me como se estivesse a ler um bom livro, sentindo o cheirinho das páginas. Infelizmente o abandono dos idosos, neste caso, é uma realidade mt triste... Fiquei um pouco triste por se ter ficado pela amizade com a C., acho q fala sobre ela de uma maneira "amorosa" xD
Quero acreditar que a D. Júlia partiu em paz, e ainda c + paz por vos ter por perto.
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